“Clínica do horror” vendia produtos vencidos e trocava botox por soro

Alvo de denúncias na Justiça por supostamente cometer fraudes ao vender intervenções estéticas, mas dificultar o acesso de pacientes a sessões e reembolsos, a clínica Corpus Elite também é palco de inúmeras outras irregularidades. Conforme relatos de ex-funcionários, quando há atendimento na empresa, materiais descartáveis estariam sendo reutilizados, produtos vencidos seriam aplicados em clientes, e compostos, como a toxina botulínica, estariam sendo diluídos em outras substâncias ou substituídos por soro fisiológico antes de serem inseridos na pele. A empresa nega as acusações.

Por dias, o Metrópoles conversou com ao menos 30 ex-colaboradores da Corpus Elite, antiga Mulher de Classe. Alguns movem processos trabalhistas contra os proprietários da clínica, Gabriel Michetti e Ana Thays Rodrigues de Oliveira, por assédio moral, direitos suprimidos e falta de pagamento, ou tem ocorrência registrada por calúnia e difamação.

As declarações, acompanhadas de áudios e prints de conversas de grupos de WhatsApp da empresa, repetem histórias semelhantes de horrores que ocorrem no interior da clínica de estética.

“Material que deveria ser usado uma única vez, a dona Ana Thays mandava a gente reutilizar em várias pacientes. Gel de depilação, por exemplo, ela mandava raspar da pele da cliente, mesmo que estivesse em partes íntimas, e guardar dentro do pote para ser usado em outra pessoa”, disse uma ex-funcionária. “Botox, ela vendia. Contudo, quase nunca era a toxina em si. Na maioria das vezes, ela mandava aplicar soro no lugar”, relatou.

Frame conversa no WhatsApp clínica - Metrópoles

Uma segunda ex-funcionária contou que para além da questão de higiene, os proprietários da Corpus Elite também colocavam em risco a saúde dos pacientes, ao mandarem colaboradores ignorarem a data de validade de produtos: “Não existia controle no estoque, nem de data e nem de marca. […] Quando começamos a citar a existência das mesclas vencidas, a dona Ana Thays dizia que não tinha problema e que deveríamos aplicar no paciente”.

“Certa vez, a própria Ana Thays, que não é formada em curso da área da saúde, diluiu botox em glicose e foi aplicando em paciente. Por um milagre o cliente não apresentou nenhum tipo de problema”, pontuou outra.

Em prints de conversa com a ex-chefe, uma profissional da área de saúde relatou que resolveu deixar o cargo que tinha após ter sido instruída a reutilizar seringas. Nas mensagens, a proprietária da clínica diz a ex-colaboradora que seringas fechadas só poderiam ser usadas com a permissão dela.

As intercorrências graves em pacientes não eram incomuns, segundo os colaboradores. Frequentemente a empresa recebia queixas de clientes após procedimentos. O Metrópoles apurou que pessoas por trás da Corpus Elite respondem por ao menos 102 ações cíveis, por falha em prestações de serviços, erros, entre outros.

Em abril deste ano, uma internauta deixou um comentário angustiante no site Reclame aqui. Em tom de indignação, a mulher contou que procurou a clínica para realizar um procedimento de preenchimento de glúteos. Contudo, além de não ter conseguido o resultado prometido, teve uma infecção gravíssima que a levou ao pronto-socorro para retirada de pus na região. Segundo ela, a empresa não a ressarciu pelos danos e não efetuou o reembolso do valor pago.

“Fiquei mais de 20 dias tomando antibióticos e anti-inflamatório. Quando comecei a sentir que havia algo estranho, entrei em contato com eles [Corpus Elite], e me diziam que estava tudo bem. Porém, resolvi ir ao médico e vi que a situação era bem grave e que foi [causada] por uma má esterilização da agulha usada. Preciso ficar em casa com dores tomando vários remédios. Parei minha vida por completo por mais de 20 dias e tive danos financeiros e emocionais”, escreveu.

Fuga da Vigilância Sanitária

À reportagem, ex-funcionários também relataram que entre os procedimentos vendidos pela clínica está o preenchimento corporal com plasma. Segundo eles, a técnica consiste em coletar uma grande quantidade de sangue do paciente, centrifugar as amostras, separar os componentes, preparar o material e reinjetar na área que o cliente deseja dar volume.

O procedimento, contudo, passou a causar efeitos sérios a pacientes. “Eram preenchidos de 40 a 60 frascos de sangue em um dia. Muitas clientes passavam mal, vomitavam, faziam xixi na roupa e até convulsionavam. Na hora de reaplicar o produto, surgia outros problemas. Muitas pacientes reclamavam e sofreram intercorrências, mas nada foi feito”, disse uma ex-funcionária.

Segundo os relatos, os proprietários da empresa instruíam, ainda, colaboradores a esconderem produtos da Vigilância Sanitária. Por meio de mensagens escritas e áudios no WhatsApp, pessoas por trás da Corpus Elite mandavam trabalhadores mentirem para agentes de fiscalização sobre a situação da clínica.

“Quando a fiscalização aparecia no Águas Claras Shopping para fazer vistoria, Ana Thays pedia para os funcionários trancarem a porta da clínica e mencionarem que apenas um salão funcionava no local. Acontecia o mesmo quando alguém chegava procurando por ela ou pelo marido, o Gabriel. As instruções eram claras: ninguém poderia dizer que eles trabalhavam ou eram os donos da clínica”, explicou um ex-colaborador.

Assédio moral

Como se não bastasse, ex-funcionários também acusam os donos da Corpus Elite de assédio moral. Segundo relatos, a dupla humilhava colaboradores, determinava horário para irem ao banheiro e expunha rendimentos de cada funcionário no grupo de WhatsApp da empresa.

Pagamentos, de acordo com os denunciantes, não eram feitos dentro do prazo estipulado. Quem deixou a empresa também relatou que não recebeu direitos trabalhistas, motivo pelo qual há inúmeros processos tramitando na Justiça do trabalho contra a empresa e seus responsáveis.

“Nos humilhavam, assediavam e diziam que se não fizéssemos o que queriam, dariam referências negativas a outros empregadores. Muitas pessoas ficam no local por medo ou por precisar muito do dinheiro que, na verdade, nem era pago. Sempre havia atrasos e descontos sem motivo. Quando pedi demissão, descobri que nem meu FGTS era depositado. Todo mês também descontavam o valor que tinha que ser repassado para o INSS. Tenho crise só de lembrar o que passei lá”, disse uma ex-funcionária.

CNPJs e Mudanças no nome fantasia

Conforme consta em inúmeros processos aos quais a clínica de estética responde, por trás da Corpus Elite há ou já existiu os seguintes CNPJs:

  • Gm Mc Estética Ltda, com a inscrição 41.301.790/0001-22
  • TNS BSB Ltda , com a inscrição 42.785.023/0001-07
  • TNS BSB Ltda, com a inscrição 42.785.023/0003-60
  • TNS BSB Ltda, com a inscrição 42.785.023/ 0002-80
  • MC Brasília Estética Ltda, com a inscrição 41.321.735/0001-02
  • MCB Estética Ltda, com a inscrição 41.350.138/0001-06
  • Martins Escritórios Ltda (antigo MC Brasília Estética Ltda), com a inscrição 32.069.249/0001-40
  • Estética Martins Ltda, (J. Abreu Serviços de Escritório Ltda, com a inscrição 26.293.532/0001-58
  • AMJ Serviços de Escritórios Ltda,  com a inscrição 30.699.745/0001-51

Somando as ações existentes em cada Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, a Corpus Elite responde a cerca de 171 processos judiciais, sendo 69 trabalhistas e 102 ações cíveis. Apesar disso, é importante ressaltar que em um processo pode ser citado mais de um CNPJ.

Como cliente, a reportagem comprou com a clínica um procedimento estético, em 9 de setembro. Assim como relatado por outras pessoas, mensagens de cancelamento das sessões também foram recebidas. Após pedido de estorno, a empresa encaminhou mensagem da assessoria jurídica informando que o pedido de reembolso deveria ser levado a âmbito judicial.

Dessa forma, a reportagem apurou que, até segunda-feira (16/10), o Gm Mc Estética Ltda, com a inscrição 41.301.790/0001-22, era o enviado a quem se interessa pelos procedimentos. No entanto, após a veiculação da matéria do Metrópoles denunciando a clínica, pessoas por trás da Corpus Elite trocaram novamente o CNPJ da empresa e, inclusive, o nome fantasia. Agora, a clínica também se apresenta com o nome Unnaderma.

Conforme consta na Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, a Redesim, o quadro societário da Gm Mc Estetica Ltda é composto por um único dono desde abril deste ano, João Martins de Abreu. Apesar das inúmeras tentativas da Justiça em contatar o homem, ninguém consegue encontrá-lo.

João, inclusive, não tem título de eleitor, mas consta como beneficiário de um programa do governo. O homem também é dono de outros CNPJs: TNS BSB Ltda, Martins Escritórios Ltda e AMJ Serviços de Escritórios Ltda. Desses, três devem cerca de R$ 216.582,74 aos cofres públicos. João surgiu no quadro societário das empresas após o registro das dívidas. Antes, o nome pertencia a Gabriel Machado Michetti, cujo e-mail ainda consta no Redesim como o contato oficial do CNPJ.

Ao lado de João, Gabriel e Ana Thays também foram processados em ações envolvendo os CNPJs e a Corpus Elite. Em uma delas, que tramita no Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT- 10), um oficial de Justiça, após não conseguir encontrar endereços dos citados, encaminhou-se a uma das unidades da Clínica, em Taguatinga.

Lá, foi atendido por uma pessoa chamada Patrícia de Sousa. Na ocasião, a mulher disse ser uma prima de Thays e confirmou ao oficial que Gabriel e Ana Thays administravam a Corpus Elite.

ReproduçãoFrame de documento de oficial de Justiça intimando donos da Corpus Elite - Metrópoles

Em 13 de outubro, a reportagem procurou a clínica Corpus Elite pela primeira vez. Por telefone, uma mulher que se apresentou como Luana Esteves Cardoso (Ouça abaixo) disse ser a nova proprietária do local. Segundo narrado, Luana adquiriu a marca há cerca de um mês. Ela negou ter recebido queixas recentes, informou ter adquirido o nome da clínica em um anúncio de “passa ponto” no aplicativo OLX e declarou não ter ciência das denúncias.

A reportagem, então, visitou a unidade da clínica no Taguatinga Shopping, no Conjunto Nacional e no Águas Claras Shopping em Busca de Thays e Gabriel. Neste último, a empresária foi localizada. Contudo, quando nos apresentamos como jornalistas, a mulher disse que se chamava Júlia e perguntou se gostaríamos do número da Corpus Elite. Curiosamente, o nome da clínica ainda não havia sido citado.

Defesa

Procurada, a clínica se manifestou por meio de nota e negou as irregularidades apontadas. Emum dos trechos, a empresa tenta desqualificar as denúncias que tramitam na Justiça do Distrito Federal, alegando que a jornalista que escreve o texto já havia comprado procedimento na empresa em outra ocasião.

Leia a resposta:

“Considerando a necessidade de esclarecimento e aplicação do direito de resposta às informações enganosas que foram repassadas a esse veículo de comunicação, esclarecesse o que se segue:

1. A empresa expõe que os salários são pagos devidamente, todos gozam de intervalo intrajornada, possuem espaço para alimentação adequado e é mantido um ambiente de trabalho íntegro. Assim, todo e qualquer questionamento sobre direitos trabalhistas são discutidos e esclarecidos em juízo.

Destaca-se, ainda, que diversos pedidos dos trabalhadores não passam de uma tentativa de enriquecimento ilícito, não havendo uma sentença sequer que julgou todos os pleitos como totalmente procedentes. Além disso, ressalta que um grupo de ex-funcionários chegou a fazer uma denúncia mentirosa no âmbito do Ministério Público do Trabalho que resultou no arquivamento da investigação e serão todas responsabilizadas criminalmente por denunciação caluniosa.

2. Os materiais descartáveis são abertos na frente de cada cliente e jamais são reutilizados. Comprova-se, ainda, a compra de expressivo número desses insumos no curto período de uma semana.

Assim, esclarece-se que as referidas alegações estão desacompanhadas de qualquer conjunto probatório mínimo e não possui qualquer prova clara e evidente.

3. Não há qualquer orientação, por parte da gestora da empresa, para que os funcionários mintam quando ocorre a fiscalização sanitária. Expõe-se que o órgão de vigilância fiscaliza periodicamente todos os lugares possíveis da empresa, sendo impossível a alteração da verdade.

Ressalta-se, ainda, que a clínica de estética possui licença sanitária e alvará de funcionamento devidamente válido.

4. Nenhum produto é alterado em sua composição, como pode ser comprovado pelos inúmeros resultados positivos em nossas clientes, destacando-se que todos os produtos e procedimentos possuem autorização da Anvisa.

Expõe-se, ainda, que jamais foram utilizados produtos vencidos, haja vista que a empresa sempre preza pelo bem estar e resultado de todos os seus pacientes. Ademais, é oportuno esclarecer que as referidas alegações de uso de produto vencido estão desacompanhadas de qualquer comprovação, tal como imagem ou vídeo desses produtos
em aplicação e sua demonstração de data, horário e local.

Ressalta-se que é obrigação de cada funcionário realizar conferência da adequação do produto a ser aplicado, os quais poderiam, inclusive, perder o seu registro por mau uso das técnicas de sua profissão.

5. A clínica de estética Corpus Elite pertence única e exclusivamente à Sra. Thays, conforme o contrato social da respectiva empresa. Destaca-se, ainda, que a referida proprietária não encontrou com nenhuma repórter, considerando que esteve presente, ao longo da semana, na única unidade em funcionamento do Conjunto Nacional.

Assevera-se, ainda, que ela jamais figurou como sócia nos CNPJ apresentadas, não possuindo qualquer relação societária com as referidas empresas e seus sócios”.

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