Fotos do Pão de Açúcar não desmentem aumento do nível do mar

Postagem com imagens do morro no Rio de Janeiro alega que os níveis do mar permaneceram estáveis por 140 anos. Mas não levou em consideração as marés. Nem a realização de um importante aterro.

Publicação compara nível do mar ao redor do Pão de Açúcar em 1880, 1910 e 2020
Comparação entre imagens antigas e recentes do Pão de Açúcar mostra aterramento marítimo, não estabilidade do nível do mar

Além de serem cartões postais simbólicos do Rio de Janeiro, o Pão de Açúcar e o Morro da Urca também viraram objeto de uma alegação viral sobre o aumento do nível global do mar.

Uma colagem com imagens do Pão de Açúcar em diferentes datas foi amplamente compartilhada em pelo menos oito idiomas, para supostamente mostrar que o oceano não está subindo em todo o mundo. A postagem que circulou no X, Facebook e Instagram, porém, é falsa.

A colagem é composta de três imagens, cada uma identificada com uma data. A primeira, da década de 1880, a segunda, da década de 1910 e a terceira tem um registro de data e hora de 2020. As três imagens parecem mostrar níveis de água semelhantes ou até mesmo em declínio.

Isso foi pretexto para usuários das redes sociais alegarem que o nível do mar não subiu desde o fim do século 19. Um argumento comum entre os céticos das mudanças climáticas é que seria exagerado dizer que o oceano estaria avançando em decorrência do aquecimento global.

Níveis do mar diferem em cada região

A checagem de fatos da DW não pôde verificar se as datas que aparecem nas imagens eram precisas. Mas, mesmo que fossem, especialistas afirmam que a justaposição de imagens de um local, especialmente num ângulo tão amplo, não é uma maneira eficaz para provar se houve alterações no nível do mar.

Imagem da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro
Vista do Pão de Açúcar na Baía de Guanabara, Rio de JaneiroFoto: YASUYOSHI CHIBA/AFP/Getty Images

Um dos motivos é que o aumento dos níveis não afeta todas as partes do mundo da mesma forma. O avanço do mar tem sido descrito como um fenômeno desigual, causado pelo campo gravitacional da Terra, pela dinâmica dos oceanos e padrões climáticos como El Niño e La Niña. Assim, algumas partes do mundo não registrarão grande aumento do nível da água ao longo de suas costas, mas outras vão ficar submersas.

Portanto, mesmo que os níveis de água ao redor do Rio de Janeiro tenham permanecido estáveis nos últimos 140 anos, como enganosamente sugeriram os usuários, as três imagens do Pão de Açúcar não podem ser usadas como prova de um fenômeno mais amplo.

Aterro marítimo no bairro da Urca

O professor de dinâmica litorânea da Universidade de São Paulo Eduardo Siegle explica que “ao longo da costa brasileira, observamos padrões de elevação do nível do mar semelhantes ao padrão global, com um aumento de cerca de 20 centímetros durante o último século”.

A Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA (Noaa) registra que o nível médio global do mar subiu de 21 a 24 centímetros desde 1880, e que que também houve elevação na área ao redor do Pão de Açúcar.

Segundo a Agência Europeia do Meio Ambiente, os oceanos subiram cerca de 21 centímetros desde 1900, e esse ritmo vem se acelerando.

Esse aumento global é visto como resultado do aquecimento global por ação humana, e “as taxas recentes não têm precedentes nos últimos 2.500 anos ou mais”, informa a agência espacial americana Nasa.

Mas por que, nas imagens mais recentes, se vê uma área coberta por edifícios aos pés do Pão de Açúcar e do Morro da Urca, que não existia antes?

 “É efeito de um aterro marítimo”, explica Siegle. “É um processo artificial em que, no início do século 20, ergueram um muro marítimo e o encheram de areia e pedras, para então construir o bairro da Urca em cima. Portanto essa expansão das áreas costeiras que vemos nesse lado protegido do Pão de Açúcar e do morro da Urca não tem nada a ver com o aumento ou a redução do nível do mar.”

Que papel têm as condições das marés?

Siegle acrescenta que “os efeitos [do avanço do mar] na linha costeira precisam ser avaliados localmente, levando em conta processos como volume de sedimentos, topografia, as ondas, as marés, etc.”.

Os padrões sazonais e as flutuações das marés podem influenciar os níveis de água, portanto seriam necessários mais dados, além do ano, para fazer uma comparação substancial entre as imagens de um local.

Especialistas já apresentaram argumentos semelhantes no passado, pois outros marcos conhecidos foram objeto de desinformação semelhante.

Em 2023, duas fotos da Estátua da Liberdade, em Nova York, foram justapostas para supostamente mostrar que os níveis de água não haviam subido entre 1898 e 2017.

No ano anterior, duas fotos do Fort Denison, no porto de Sydney, Austrália, tiradas em séculos diferentes, também circularam com uma alegação semelhante de que o nível do mar subiu “aproximadamente 0,0 centímetro nos últimos 140 anos”.

Elevação do nível do mar é “sério desafio de adaptação”

Portanto as imagens não provam que o nível do mar não subiu nos últimos anos. Enquanto isso, instituições como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima (IPCC) alertam que a elevação do nível do mar continuará impactando comunidades de todo o mundo.

O IPCC considera a elevação do nível do mar um “sério desafio de adaptação”, cujos riscos deverão crescer nas próximas décadas, e “desacelerar a subida do nível do mar depois de 2050 só será possível com uma mitigação rápida e profunda das mudanças climáticas”.

DW