O planejamento para conter intercorrências nas possíveis “manifestações”, até então previstas para o 8 de janeiro, foi estruturado dois dias antes dos atos golpistas, com informações de um movimento pacífico. Assinado e elogiado por Anderson Torres, o plano não se alterou quando novos alertas chegaram e o cenário já previa um atentado grave contra a democracia. Avaliado como “genérico” por quem tem familiaridade com planos operacionais, o documento conta ainda com diversas falhas.
Ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) Torres, antes de viajar, assinou o Protocolo de Ações Integradas (PAI), pensado para “promover ações de segurança” e “assegurar o direito constitucional à livre manifestação”, como traz o documento. Esse planejamento sempre é feito pela pasta antes de protestos.
O protocolo foi fruto de uma reunião ocorrida na SSP em 6 de janeiro, pela manhã, quando integrantes de forças de segurança avaliaram, com as informações que tinham, a possibilidade de uma manifestação pacífica, de pouca adesão e baixo risco. O então secretário Anderson Torres assinou o documento pela tarde e embarcou à noite para os Estados Unidos, com a família.
Em depoimentos aos parlamentares do Congresso e da Câmara Legislativa do DF, Torres disse que, se o protocolo tivesse sido cumprido, “os atos de vandalismo não teriam sido consumados”. Porém, uma série de acontecimentos entre a confecção do PAI e a invasão aos prédios da Praça dos Três Poderes foram solenemente ignorados.
Alertas
Na manhã de 6 de janeiro, o cenário avaliado por inteligências de forças de segurança ainda era de incerteza. As convocações de bolsonaristas em redes sociais já estavam alarmantes, mas muitas vezes traziam exageros que não se concretizavam na prática, como na chamada para a “maior mobilização da história do Brasil”, em 1º de novembro de 2022, que contou apenas com 10 pessoas na Esplanada dos Ministérios.
A própria responsável pela concretização do PAI, a coronel Cíntia Queiroz, subsecretária de Operações Integradas da SSP, na CPI do DF, comentou sobre essa falta de dados concretos na manhã do dia 6. “Naquele momento, a gente não tinha informações assertivas do que realmente iria acontecer”, disse, antes de defender que o protocolo “foi construído considerando todos os cenários possíveis”.
Mas a quantidade de informações era tão escassa que o PAI produzido dois dias antes do 8/1 não informa sequer o público estimado. Em protocolos de outros atos públicos ocorridos em Brasília, há a estimativa de público, que é um dado essencial para a organização da segurança. Mas logo após a confecção e a assinatura do planejamento feito contra intercorrências no protesto do fim de semana, surgiram dados relevantes.
Um deles veio no mesmo dia, pelo Relatório de Inteligência nº 6 da SSP-DF, elaborado pela Subsecretaria de Inteligência da pasta. Ele cita as convocações para os atos, ressaltando que estavam previstas ações como “invasão a órgãos públicos e bloqueio de refinarias e distribuidoras de combustíveis”.
“As divulgações apresentam-se de forma alarmante, dada a afirmação de que a ‘tomada de Poder’ ocorreria, principalmente, com a invasão ao Congresso Nacional. […] Houve destaque para manifestações a partir do dia 7 de janeiro, com participação de milhares de pessoas e vinda de caravanas. […] Integrantes seriam pessoas conhecidas por CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores), com postagens sobre sitiar Brasília, que denotam a intenção de praticar atos de violência no dia 8 de janeiro.”
Dia 7
No dia anterior à tentativa de golpe, o cenário já era completamente diferente de quando o PAI foi criado. Já pela manhã, quem fez um alerta para a mudança das expectativas foi Jorge Henrique da Silva Pinto, tenente-coronel da Polícia Militar do DF e coordenador de Assuntos Institucionais da Subsecretaria de Inteligência da SSP.
O militar encaminhou um boletim às 9h09 do dia 7 de janeiro pontuando que há uma “convocação, a nível nacional, para que simpatizantes do movimento patriota se desloquem para Brasília com a intenção de compor o movimento ‘Tomada do Poder’ durante os dias 7 e 8 de janeiro de 2023”. Ele avisa ainda que, segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), havia a expectativa da chegada de 43 ônibus interestaduais, com 1.622 passageiros, no decorrer do dia.
Esse alerta foi enviado em um grupo chamado Difusão, com seis pessoas além de Jorge Henrique: o coronel da PMDF Fábio Augusto Vieira; dois policiais civis do DF; o ex-secretário Anderson Torres; o secretário substituto Fernando de Sousa Oliveira; e a subsecretária de Inteligência Marília Ferreira de Alencar. Os dois últimos trabalharam com Torres no Ministério da Justiça de Bolsonaro e foram levados por ele para a SSP de Ibaneis, no DF.
O tenente-coronel enviou novos boletins posteriormente. Os comunicados citam, por exemplo, a chegada de 50 ônibus em Brasília e a presença de aproximadamente 1,5 mil manifestantes no Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano (SMU), além de destacar os ânimos exaltados dos manifestantes, com possibilidade de confronto com as forças de segurança.
Inações
O ex-diretor-adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Saulo Moura da Cunha prestou depoimento à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso e ressaltou ainda os alertas do órgão. Foram feitos 33 boletins de inteligência sobre o movimento golpista entre os dias 2 e 8 de janeiro. Pela manhã do dia 7, por exemplo, um informe era claro: “Mantêm-se convocações para ações violentas e tentativas de ocupações de prédios públicos, principalmente na Esplanada dos Ministérios”.
Segundo Saulo Moura, na tarde do dia 7, “os órgãos de segurança do GDF e alguns órgãos do governo federal já tinham ideia de que teríamos uma manifestação com grande número de pessoas”. A própria Polícia Federal, por meio do diretor-geral Andrei Passos, fez uma reunião com a SSP externando preocupação.
De acordo com a PF, “os representantes da Secretaria de Segurança Pública manifestaram um entendimento diverso, alegando que se trataria de uma simples manifestação de cunho pacífico”. Naquela reunião, estavam presentes a coronel Cíntia e Fernando de Souza Oliveira. Enquanto tudo isso acontecia, Torres aproveitava a viagem aos Estados Unidos, antecipada para antes mesmo das férias do qual teria direito, que só valeriam a partir do dia 9.
Lacunas no plano
O então secretário de Segurança do DF alegou, na CPI, que o Protocolo de Ações Integradas era um “ser vivo”, ou seja, não era estático e poderia ser mudado de acordo com situações de momento. Mas alguns pontos frágeis do PAI não puderam ser modificados em cima da hora. A disponibilização de gradis, por exemplo, não condiz com o perigo estimado um dia antes da manifestação.
Prédio alvo de bolsonaristas, o Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o protocolo, só teve 20 gradis simples. Uma fonte da segurança pública ouvida pela reportagem, que preferiu não se identificar, comenta que grandes protestos precisam de contenção de linhas de gradis duplos.
“Qualquer pessoa que entende de segurança pública sabe que o PAI está cheio de falhas. Não informa o público, não tem análise de risco, prevê o gradil simples, sendo que o gradil duplo é o que impediria que os manifestantes derrubassem aquela estrutura, porque uma parte ‘segura’ a outra. Ou seja, é um plano genérico. Com a mudança de cenário, ele tinha que ser refeito.”
A questão da ausência da análise de risco já tinha sido destacada em março. Essa avaliação traz, no protocolo, orientações sobre a dimensão das ameaças e a condução de possíveis presos, mas isso não aparece no planejamento anterior à tentativa de golpe. Até o PAI elaborado para controlar a 23ª Parada do Orgulho LGBT de Brasília, em 3 de julho de 2022, vinha com o alerta de “ameaças de grande impacto”. Essa avaliação do grau de ameaça “some” do planejamento assinado por Torres.
Efetivo
Outro indicativo de que o perigo dos ataques contra a democracia foi subestimado veio do direcionamento da tropa. Três dias antes da manifestação, o coronel Marcelo Casimiro Vasconcelos Rodrigues, responsável pelo 1º Comando de Policiamento Regional (CPR), fez um “pedido de apoio” para o Departamento de Operações (DOP), em ofício detalhando as tropas que julgava necessárias para conter os protestos.
Naquele documento, não havia pedido para contar com o Batalhão de Choque ou o Batalhão de Policiamento com Cães (BPCães), por exemplo, fundamentais em grandes atos. Casimiro estava de folga no dia 8 e escalou, verbalmente, o major Flávio Alencar, que disse, também na CPI, nunca ter sido “escalado verbalmente para atuar numa operação ou manifestação”, em 17 anos de serviço.
Flávio chegou a ser preso duas vezes. Ele aparece em imagens ordenando um movimento que fez a tropa se mobilizar e facilitou a descida de manifestantes ao STF, que defendeu dizendo ser uma ação para resgatar o então comandante da PM, ferido. Também foi o major que disse, em mensagem de dezembro de 2022, “na primeira manifestação, é só deixar invadir o Congresso kkk”. Segundo ele, a afirmação foi uma brincadeira infeliz, sobre perigos de perder o Fundo Constitucional do DF.
Outro militar que chegou a ser preso e ainda continua detido é Jorge Eduardo Naime. Ele era chefe do DOP e estava de folga no 8 de janeiro, sendo substituído pelo coronel Paulo José Ferreira. Naime declarou na CPMI que o comando da operação na data era do coronel Casimiro, segundo o PAI.
“Pela matriz de risco que foi feita, com as informações da reunião de sexta-feira às 10h da manhã, na Secretaria de Segurança Pública, a responsabilidade do policiamento era do 1º Comando de Policiamento Regional, a comando do coronel Casimiro.”
Já Casimiro negou a informação, na CPI do DF. Segundo ele, “o planejamento dessa operação não foi a cargo do 1º CPR”. Cíntia, também em oitiva, foi questionada sobre quem era, dentro da PM, encarregado pela organização para o ato, mas deixou mais dúvidas: “Não sei afirmar aos senhores a quem coube essa responsabilidade, se foi ao 1º CPR ou se foi ao DOP”.
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