Em uma semana marcada pelos badalados lançamentos do iPhone 15, da Apple, e do Mate X5, o telefone dobrável e compatível com 5G da Huawei, a disputa econômica, comercial e tecnológica entre Estados Unidos e China teve um novo capítulo.
Segundo informações publicadas inicialmente pelo The Wall Street Journal, o regime chinês endureceu as restrições ao uso do iPhone por servidores públicos no país, por questões supostamente ligadas à segurança nacional. Funcionários de empresas estatais, agências e órgãos do governo teriam recebido “recomendações” para que não utilizassem os smartphones da Apple em seus locais de trabalho.
Na quarta-feira (13/9), Pequim negou que tenha proibido os trabalhadores de usar iPhones ou qualquer outro equipamento eletrônico da Apple. O governo dos Estados Unidos não se convenceu com a manifestação dos chineses e demonstrou “preocupação”. John Kirby, porta-voz da Casa Branca para questões de segurança nacional, disse que a falta de transparência da China sobre o assunto sinaliza uma “retaliação agressiva e inapropriada” aos EUA.
China dá o troco
Segundo especialistas ouvidos pela reportagem do Metrópoles, uma das explicações para a ofensiva contra o iPhone está nas sanções aplicadas pelos EUA à Huawei, gigante de tecnologia da China. Em 2019, a companhia foi incluída pelo governo americano em uma lista de empresas apontadas como potencialmente ameaçadoras à segurança nacional. As restrições foram ampliadas em 2020, em meio a acusações sobre a proximidade da Huawei com militares chineses.
Somente entre 2019 e 2023, os EUA aplicaram seis rodadas de sanções contra a empresa, totalizando mais de uma centena normas, entre as quais a proibição de que a Huawei utilizasse qualquer componente americano em seus produtos.
Apesar das punições, a Huawei fechou o primeiro semestre deste ano com uma participação de cerca de 15% no mercado global de telefones dobráveis – é a primeira empresa chinesa a lançar modelos desse tipo. Horas antes do lançamento do iPhone 15 pela Apple, a Huawei apresentou ao mercado o Mate X5, apenas alguns dias depois do lançamento do Mate 60 Pro – o primeiro telefone 5G da empresa que usa chips 100% nacionais desde as restrições impostas pelos EUA.
Além da represália comercial por causa das sanções contra a Huawei, dizem os analistas, a China busca limitar a influência de tecnologia estrangeira no país. “Quando Pequim impõe uma proibição dessa natureza, a mensagem que pretende passar é que o governo tem condições de restringir o tamanho do mercado de uma grande empresa na China. É um recado não apenas para a Apple, mas para os EUA”, afirma Isac Costa, professor do Ibmec e especialista em tecnologia.
Para Helbert Costa, diretor de tecnologia e marketing na Monte Bravo Investimentos, trata-se de um movimento que, sob o pretexto de proteger a segurança do país, “traz consigo um protecionismo econômico evidente”. “A proibição do uso de tecnologia americana em ambientes sensíveis do governo reduz o risco de espionagem ou outras violações de segurança na China. Mas sabemos que o país é conhecido por proteger as suas indústrias e promover as empresas locais em detrimento das estrangeiras. Ao restringir o uso de iPhone, o governo promove os fabricantes locais de smartphones e reduz o domínio da Apple no mercado da China”, diz.
“Estamos acompanhando uma guerra tecnológica. Vivemos em uma era pós-industrial, onde a indústria se submete à tecnologia. Significa dizer que quem controlar a tecnologia controlará a indústria”, explica Helbert. “Entre as tecnologias que fazem parte dessa guerra, podemos destacar a inteligência artificial, o 5G e, principalmente, semicondutores, que são a chave para praticamente qualquer avanço tecnológico.”
Segundo Helbert Costa, se a Huawei for bem sucedida com o Mate 60 Pro, “estaremos presenciando a quebra de um monopólio”. “A China terá um produto 100% nacional e, com o governo dando claro direcionamento ao não uso do produto americano, se abrirá uma porta de crescimento para a Huawei. Isso deve incentivar o surgimento de outras empresas chinesas que não precisarão mais usar semicondutores da TSMC (multinacional de Taiwan) ou de empresas americanas”, afirma.
Perda de US$ 200 bilhões e ações em queda
No segundo trimestre de 2023, a China se tornou o maior mercado mundial de iPhones, com 24% de todas as remessas do aparelho, superando os EUA (21%). Em outubro do ano passado, de acordo com a consultoria Counterpoint, o iPhone 14 Pro e o iPhone 14 Pro Max foram os dois dispositivos mais vendidos no país asiático.
Em julho, depois de sete anos, a Apple voltou ao topo do ranking das marcas mais valiosas do planeta, segundo um levantamento da Kantar Brandz. A empresa americana alcançou US$ 947 bilhões – quase US$ 130 bilhões a mais que o Google, vice-líder – e também foi a primeira do mundo a bater US$ 3 trilhões em valor de mercado.
As sanções de Pequim ao iPhone, no entanto, derrubaram as ações da Apple na Bolsa de Valores de Nasdaq, em Nova York, focada em empresas de tecnologia. Em apenas dois dias, entre 6 e 7 de setembro, as perdas acumuladas foram de 6,8%. A companhia perdeu US$ 200 bilhões em valor de mercado nesse curto período.
Nem mesmo a euforia em torno do lançamento do iPhone 15, nesta semana, impediu um tombo de quase 3% na terça-feira (12/9). Na sexta-feira (15/9), depois de esboçar uma reação, os papéis da Apple fecharam em baixa de 0,42%, negociados a US$ 175.
“A Apple tem uma capitalização gigantesca no mercado. Pequenas variações nos preços das ações movimentam valores nominais elevados. Uma perda de mercado de US$ 200 bilhões é um número astronômico, mas, quando você olha a capitalização da Apple, é relativamente pouco em termos percentuais. É uma queda, um soluço, mas ainda não é um derretimento das ações”, pondera Isac Costa, do Ibmec. “De qualquer forma, os investidores estão começando a adequar suas posições a uma nova avaliação de risco das ações da Apple. É um movimento natural.”
Tiro no pé?
O novo capítulo do embate entre China e EUA se dá em um momento desfavorável para os chineses. O país tem sofrido com uma forte desaceleração econômica, em meio à crise do mercado imobiliário, desemprego recorde entre os jovens e uma demanda fraca por bens e serviços, que desaqueceu o mercado. Em julho, a China registrou sua primeira deflação desde fevereiro de 2021, como reflexo da diminuição generalizada do consumo.
Depois de uma série de medidas para estimular a economia, a semana terminou com algumas notícias auspiciosas para Pequim. Setores como indústria, varejo e serviços tiveram índices positivos em agosto, o que pode ser o início de uma reação. A venda de imóveis, contudo, recuou 1,5% nos oito primeiros meses do ano, agravando a situação do já combalido mercado imobiliário local.
Diante desse quadro econômico delicado, em meio à renhida disputa por mercado entre as duas maiores potências mundiais, o bloqueio de Pequim ao iPhone pode prejudicar a própria China mais à frente, embora represente um ganho imediato sobre o maior rival, afirmam os especialistas.
O intervencionismo do regime liderado por Xi Jinping também pode afugentar investidores. A postura centralizadora do ditador chinês, que comanda o pais há uma década, e sua visão anacrônica da realidade vêm impondo altíssimo custo econômico à China – como ficou claro, por exemplo, no fracasso da política de “Covid zero”, a dos lockdowns extremos durante a pandemia.
“A restrição aos produtos americanos vai reduzir o acesso à tecnologia e, consequentemente, limitar o avanço da indústria dos dois países. A Apple certamente vai encontrar outros consumidores para seus produtos, mas perderá uma fatia grande em seus resultados de curto prazo”, afirma Bruno Madruga, head de Renda Variável na Monte Bravo Investimentos.
“Nesse contexto, não teremos um ganha-ganha, mas um ganha-perde: a China ganha ao restringir o acesso a informações tecnológicas, limitando possíveis informações estratégicas, mas perde economicamente, no fornecimento de insumos para a produção da Apple”, explica Bruno.
“No fim das contas, ambos lados sairão prejudicados no longo prazo. Essas medidas protecionistas trarão menos crescimento econômico à China. E não é absurdo imaginar que venham novas restrições a produtos chineses por parte dos americanos. Isso só piora o mal-estar geopolítico já existente entre os dois países.”
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